segunda-feira, 21 de março de 2011

Fisgados pela boca.

Na infância, o proprietário da Santa Adega, de Florianópolis, Eduardo Araújo costumava ver os pais brindando ocasiões especiais com um vinho importado da Alemanha. Apesar de não se recordar da marca, tem a nítida lembrança de que o produto acompanhava apenas eventos extraordinários, devido ao alto preço que a garrafa tinha na época - mesmo sendo de qualidade intermediária. Hoje, sua empresa comercializa alguns consagrados rótulos franceses e italianos por valores entre 40 e 100 reais.

Ricardo Almeida, sócio-proprietário do restaurante e enoteca Osigo, também da capital, lembra  sem muitas saudades do tempo em que diversos clientes achavam um absurdo investir mais de 50 reais em uma garrafa de vinho. “Hoje normalmente consomem rótulos de excelente qualidade na faixa de 120 reais”.

Os dois empresários testemunham essas e outras revoluções no perfil de consumo do catarinense quando o assunto é vinho nos últimos cinco anos. Na realidade, o aumento do poder de compra do cliente não seria suficiente por si só para alavancar as vendas do néctar dos deuses. Como todo produto envolvido em sofisticação e ainda símbolo de uma parcela elitizada da população, precisa que o público-alvo tenha um conhecimento um pouco mais aprofundado sobre o mesmo. No caso do vinho, isso envolve também refeições.

É nesse ponto que os dois empresários tornam-se poderosas mídias. Eduardo é graduado como Sommelier pelo Professional Culinary Institute na California (EUA) e pela Court of Master Sommeliers - nível 2. Como tal, ele sabe identificar as características de determinado vinho e adequá-lo a pratos. Ele monta, ainda, a carta de vinhos de hotéis e restaurantes - a do Osigo é elaborada por ele. “Comercializo 450 rótulos na Santa Adega, e para mantê-la atualizada eu experimentei em torno de 600 vinhos durante os últimos doze meses”.

Toda essa expertise é aplicada como um gerador de conhecimento. O sommelier transformou a própria loja em sala de aula, e é licenciado pela Escola de Vinhos Miolo, fabricante de Bento Gonçalves que Eduardo comercializa com exclusividade. São cursos com duração de um dia, onde o participante aprende sobre a elaboração de vinhos brancos, tintos e espumantes, a história do vinho, a vitivinicultura no mundo, a análise sensorial, a harmonização enogastronômica e a degustação. “É como uma isca, para quebrar o gelo e despertar o interesse nas pessoas”. Ele realiza também treinamentos com grupos de garçons de restaurantes e hotéis para os quais vende. Juntos, estabelecimentos do tipo representam 85% do faturamento da Santa Adega, que em 2010 comercializou 300 mil garrafas.

Se Eduardo é um propagador dos prazeres que envolvem o vinho, Ricardo é o grande apresentador do produto, o último elo de toda a cadeia. “Conforme eu mostro o produto, eu suscito o cliente a gostar, ou então a pelo menos conhecer”. Através do que ele disser, e da maneira como expor, a pessoa pode sair do restaurante querendo comprar a garrafa de uma determinada marca e fazer propaganda dela para os amigos.

Nesse contexto, um ponto a favor é o ambiente. Durante a construção do Osigo, Ricardo investiu na decoração, em itens como controle de iluminação, de temperatura, som e conforto. Isso é crucial na hora de “pintar o quadro” - expressão que o empresário usa para o clima que prepara aos clientes antes, durante e depois das degustações. A frase veio após o proprietário ouvir algumas vezes frequentadores dizer que jamais esquecem do vinho que beberam com o cônjuge na França vendo a torre Eiffel, ou em um restaurante italiano na região de Toscana. “Foi aí que eu percebi que o local é imprescindível para o consumidor aprovar o vinho e querer tê-lo em casa”. Dessa maneira, há uma vantagem em relação aos supermercados, nos quais nem sempre existe um profissional full time para dar explicações sobre os rótulos disponíveis.
Isso está prestes a mudar. Alguns supermercados estão profissionalizando a equipe, ampliando e melhorando o layout do espaço que dedicam a vinhos em suas unidades. Assim, conquistarão um tipo de público diferenciado, e não farão concorrência com Osigo ou Santa Adega. “Serão pessoas que vão comprar ingredientes para o jantar e, no mesmo estabelecimento, terão uma série de bons rótulos à disposição”, detalha Eduardo. Grandes redes como Angeloni e Imperatriz têm ainda a vantagem de conseguir trazer marcas com exclusividade e em grande volume, aproveitando a logística já existente e o contato com dúzias de fornecedores. O Imperatriz, inclusive, já levou Eduardo algumas vezes para suas unidades com o intuito de fazer minipalestras de curta duração aos compradores no momento exato em que estão escolhendo qual vinho levar para casa. “Supermercados são ainda os grandes clientes das adegas”.

É um movimento ainda recente, porém em fase de crescimento. Nesse mesmo ritmo, estão as vendas pela Internet. Segundo a Bordeaux Management School, uma das maiores escolas de negócios de vinho no mundo, as vendas realizadas no ambiente virtual aumentam 30% a cada ano - estimativas da entidade apontam que isso movimentou 2 bilhões de Euros em 2010.


  
Tanto o sommelier quanto o sócio-proprietário do Osigo conhecem esse poder há tempos, e o usam com frequência. Enquanto o primeiro dispôs em seu site todo seu portfólio com preços, harmonizações e agenda dos cursos de degustação, o segundo apostou em sites de compra coletiva, a mais nova febre da Internet.

Nesse ponto, Ricardo viu-se numa encruzilhada. Em geral, os públicos consumidores de sites como Peixe Urbano e Compra Catarina são seduzidos pelos generosos descontos, pela questão do preço reduzido. No Osigo, considerado uma casa de luxo, o apelo é totalmente diferente, e haveria o risco de comprometer a imagem em relação à clientela já fidelizada. A solução encontrada foi trabalhar sob a forma de crédito, na qual quem o adquirisse não estaria limitado a uma única oferta, mas a todo cardápio e enoteca. Deu certo. Foram vendidos mil jantares em 24 horas, e a maioria gastou o quádruplo do que o crédito permitia. “Veio muita gente que não conhecia, então os conquistei a ponto de fazerem agora propaganda boca a boca para mim”.

Outra questão em que Ricardo levou vantagem foi no aumento das vendas em épocas de baixa. Nove em cada dez clientes são nativos da capital, e costumam passar o verão nas praias da cidade. O trabalho com os sites de compra coletiva deu força a meses como janeiro e fevereiro, principalmente em noites de menor movimento como as do início da semana.

É fato também que a qualidade dos vinhos está chegando a preços mais acessíveis. No Osigo, por exemplo, raramente há um rótulo que custe mais de 300 reais. Como consumidor, Ricardo bebe vinhos na faixa de 100 reais. Na Santa Adega, a variação é maior, com unidades ultrapassando o valor de 1000 reais - mesmo havendo alguns vinte vezes mais baratos.

Um dos motivos dessa redução de preços é a recente maior facilidade em importar vinhos da Argentina e do Chile. Os dois países conseguem trazer seus produtos com incentivos através de acordos comerciais específicos do Mercosul. De acordo com o Instituto Brasileiro do Vinho, o país importou mais de 37 milhões de litros de vinhos argentinos e chilenos em 2009 (em 2004, não passava de 22 milhões). Além disso, produtores nacionais, como os da serra gaúcha, conquistaram reduções de ICMS junto ao governo estadual do Rio Grande do Sul. Em Santa Catarina, o presidente da Associação Catarinense dos Produtores de Vinhos Finos de Altitude (Acavitis), José Eduardo Bassetti, diz que hoje a entidade luta para conseguir algo semelhante aos gaúchos. “Na verdade, queremos criar uma tributação única para todos os estados do Brasil, para que possamos fazer frente aos internacionais”. Enquanto isso não acontece, os 28 associados organizam-se em clusters. Juntos, ultrapassaram a marca de 600 mil reais em compras durante o ano passado, e a meta para 2011 é chegar a 1 milhão de reais.

O maior foco em qualidade nos vinhedos da região de São Joaquim - local onde está a maioria dos associados da Acavitis - gera uma desvantagem quando o assunto é a chegada em grande volume nos pontos de venda. A vinícola Villa Francioni, por exemplo, tem capacidade instalada para produzir 500 mil garrafas por ano, porém a média fica em torno de 150 mil. “Algumas regiões colhem 20 toneladas por hectare, mas nós colhemos 4 toneladas no mesmo espaço”, revela Daniela de Freitas, presidente do conselho de administração da empresa.

Esse número poderia representar uma ineficiência, mas na realidade é intencional. Lá, alguns produtores fazem um trabalho nos vinhedos para que realmente produzam menos. Até determinado estágio, quanto menor a produção, mais concentradas ficam as uvas, resultando em melhor qualidade. “Aí eu consigo controlar mais, pois tenho uvas sadias e com alta concentração”, explica Daniela.

Não é raro ouvir alguns produtores dizerem que uma marca de vinho é para ser deixada para os netos. O motivo é que a padronização leva um tempo que varia entre 10 e 15 anos. “Com três décadas de idade, a uva obtém uma qualidade excelente”, diz Eduardo. Contudo, há quem torne-se exceção. Nesse caso, a própria Villa Francioni serve de exemplo, já que os primeiros lançamentos aconteceram em 2005.

O empreendimento foi idealizado cinco anos antes pelo fundador das empresas Cecrisa e Portinari, Manoel Dilor de Freitas, que faleceu pouco antes dos vinhos chegarem ao mercado. Hoje, dez rótulos estão disponíveis e, apesar da pouca idade, são elogiados pelos sommeliers. “Agreguei mais valor à minha empresa quando comecei a trabalhar com eles”, conta o proprietário da Santa Adega. Segundo ele, é um feito e tanto para esta vinícola disputar com produtos de regiões francesas com tradição de mais de 5 séculos na produção de vinhos.

Um dos motivos desse sucesso é uma mescla de tradicionalismo com modernidade nas técnicas de produção. Lá, o processo de elaboração dos vinhos utiliza a gravidade para a transferência entre os tanques de fermentação, conceito este já empregado em vinícolas francesas e italianas. Assim, a cantina foi desenvolvida em seis níveis, aproveitando a encosta de um morro. Da recepção da uva até a cave das espumantes, há um desnível de 23 metros. “Não fazemos bombeamento elétrico ou mecânico, o que ocasiona menor impacto ambiental”, conta Daniela.

Uma estratégia para intensificar a presença nos pontos de venda é estender o portfólio - não apenas na quantidade de marcas, mas na correta segmentação de mercado. Assim, a Villa Francioni lançou recentemente a linha Aparados, que é produzida com um único tipo de uva, e será vendida em supermercados, almejando um maior número de pessoas. “A linha será como isca para que cheguemos às grandes massas”.

Há também algumas empresas que aproveitam para investir em produtos correlatos ao vinho, como a vinícola gaúcha Campestre. Criadora das marcas Pérgola e Zanotto, o empreendimento produz suco de uva, comercializado em embalagens que variam de 295 mililitros a 4,6 litros. “Os sucos já representam 30% das vendas”, revela Caroline Rizzoto, coordenadora de marketing da Campestre. O grande motivador desse percentual é o pujante interesse de crianças, idosos e diabéticos nesse tipo de produto, pois não possui adição de açúcar ou álcool. Caroline destaca ainda que os estados da região Nordeste têm ajudado nessa questão, que comprou da vinícola 12 milhões de litros de sucos e vinhos em 2010.
Há um paradigma em vias de ser quebrado sobre qual o público que predomina o consumo de vinhos. Existe uma imagem pré-concebida de que são homens acima dos quarenta anos que mais bebem. Entretanto, recentemente a Diageo, uma das líderes mundiais em negócios com bebidas alcoólicas, indicou que 65% dos consumidores de vinho no Brasil são mulheres. Eduardo percebe que há um crescente interesse desse grupo pela bebida em Santa Catarina, mas que tem ficado surpreso com a quantidade de jovens comprando, tanto do sexo masculino quanto do feminino. Nos cursos que ministra, o sommelier nota uma maior rapidez das mulheres no aprendizado. “Elas percebem melhor os sabores, são mais sensíveis a eles e quase sempre conhecem mais sobre gastronomia, aromas e temperos”.

No Osigo, Ricardo conta que casais jovens ainda sem filhos - ou com crianças pequenas - se tornaram os grandes consumidores. “Tanto ele quanto ela degustam muito. O restaurante, com uma adega extensa, transformou-se em uma das poucas horas de lazer para o casal que tem uma vida agitada na cidade, e querem brindar esse momento com belos rótulos”.

Esses novos perfis de consumo elevaram as estatísticas recentes de vendas. Porém, os players desse mercado são unânimes ao citar a conhecida ligação do vinho com a saúde - que é também um importante apelo comercial. O cardiologista Jairo Monson Filho é um dos maiores estudiosos no assunto, e já publicou artigos ligando a bebida ao combate a diabetes, depressão e osteoporose. Todavia, ele alerta que as ações benévolas do vinho para a saúde só ocorrem se for bebido com moderação, regularmente, junto com as refeições e por quem não tenha contraindicação à ingestão de produtos que contenham álcool - e também que vinho não é medicamento.

Fonte:
http://www.negociosempreendimentos.com.br/detalhes/noticia/98-fisgados-pela-boca